It’s raining all over again
It’s raining on my heart;
It’s raining down;
It’s raining on my soul;
It’s raining down;
When you’re looking back it’s too late
when you’re feeling sad it’s too late
(Raining Down - Loopless)
Clapham at night time, lights wash the pretzel store, and - we're still there, my love
domingo, junho 29
sexta-feira, junho 27
Da solidão
Manhã. As quatro paredes de sempre. Estava deitada na cama a imaginar uma fotografia do amanhecer: a janela fechada, a ventoinha ligada, a vizinha a gritar. Corri a mão pela cabeceira em busca do comando do som: ligo - mão no livro - olhos nas palavras - asfixia. Nesta altura já não sei onde me perdi, quem me levou o ar, ou se terei sido eu ao levar as mãos à cabeça que, em desespero, me terei asfixiado a mim própria.
Eu não dei conta do silêncio e desliguei a música, que me invadiu a privacidade.
Sinto cheios os meus dias: em todos eles penso, em todos eles converso, em todos eles me escondo em imagens. Fecho os olhos e oiço piano ao adormecer, notas musicais perdidas que geram uma melodia na minha mente. E ela existe? Se não, é mais uma vez o contrário de tudo o que faz parte da minha vida.
Eu sei que há quem chore por ser sozinho - eu sei - eu sei que há quem não goste de estar só e se refugie em multidões, ou na praia com o mar, pensando conviver com o vazio. Eu não suportaria viver virada para o mar, olhá-lo todos os dias, tê-lo dentro da minha casa - da minha vida - ou ainda no meio da floresta, numa casa de janelas e vidro, onde só visse as árvores e a madeira dos troncos. Eu não gostaria de ser invadida por imagens que sugerem a solidão, imagens onde nunca existe alguém além de nós próprios, pois não me sinto só se obrigada a recordações.
Eu não tenho medo do escuro ou ainda que me deixem - porque não me deixam - eu sonho com a leveza de ninguém pensar em mim, para assim não pensar em ninguém; eu sonho com a minha mão a atravessar o espelho e a puxar-me para ele; eu sonho com o piano encantado que toca para mim, à noite, quando fecho os olhos; eu sonho com a solidão.
Eu sei que esta vontade só nasce por projectar a minha imagem para a vida, sei que já me julguei só e que agora me conheço o bastante.
Eu sei que somos pequenos no meio de tudo, de nada, mas também sei que podemos ser grandes para nós próprios.
Manhã. As quatro paredes de sempre. Estava deitada na cama a imaginar uma fotografia do amanhecer: a janela fechada, a ventoinha ligada, a vizinha a gritar. Corri a mão pela cabeceira em busca do comando do som: ligo - mão no livro - olhos nas palavras - asfixia. Nesta altura já não sei onde me perdi, quem me levou o ar, ou se terei sido eu ao levar as mãos à cabeça que, em desespero, me terei asfixiado a mim própria.
Eu não dei conta do silêncio e desliguei a música, que me invadiu a privacidade.
Sinto cheios os meus dias: em todos eles penso, em todos eles converso, em todos eles me escondo em imagens. Fecho os olhos e oiço piano ao adormecer, notas musicais perdidas que geram uma melodia na minha mente. E ela existe? Se não, é mais uma vez o contrário de tudo o que faz parte da minha vida.
Eu sei que há quem chore por ser sozinho - eu sei - eu sei que há quem não goste de estar só e se refugie em multidões, ou na praia com o mar, pensando conviver com o vazio. Eu não suportaria viver virada para o mar, olhá-lo todos os dias, tê-lo dentro da minha casa - da minha vida - ou ainda no meio da floresta, numa casa de janelas e vidro, onde só visse as árvores e a madeira dos troncos. Eu não gostaria de ser invadida por imagens que sugerem a solidão, imagens onde nunca existe alguém além de nós próprios, pois não me sinto só se obrigada a recordações.
Eu não tenho medo do escuro ou ainda que me deixem - porque não me deixam - eu sonho com a leveza de ninguém pensar em mim, para assim não pensar em ninguém; eu sonho com a minha mão a atravessar o espelho e a puxar-me para ele; eu sonho com o piano encantado que toca para mim, à noite, quando fecho os olhos; eu sonho com a solidão.
Eu sei que esta vontade só nasce por projectar a minha imagem para a vida, sei que já me julguei só e que agora me conheço o bastante.
Eu sei que somos pequenos no meio de tudo, de nada, mas também sei que podemos ser grandes para nós próprios.
terça-feira, junho 24
Um dia bonito para alguém bonito
Ana, para ti, porque hoje é o teu aniversário, um grande beijinho dado de coração.
nota: pouco se nota a minha presença, mas estou aqui a brindar a ti, querida!
Ana, para ti, porque hoje é o teu aniversário, um grande beijinho dado de coração.
nota: pouco se nota a minha presença, mas estou aqui a brindar a ti, querida!
quinta-feira, junho 19
Sei de ti na memória
Tão profundas são as memórias da noite...
Não te conheço mas sei.
Sei como o teu corpo repousava nos meus braços.
Sei o que pesa e como se move.
Sei da textura dos teus cabelos.
Sei como respiras e sei como dormes.
Não te conheço e escapas...
Não te conheço mas povoas as minhas noites.
Já não durmo, apenas me estendo na cama descompensado.
A noite... A noite... Devolve-me a noite.
O ar falta neste tempo que me foge.
Tenho sede dos teus lábios.
João Ganilho
Tão profundas são as memórias da noite...
Não te conheço mas sei.
Sei como o teu corpo repousava nos meus braços.
Sei o que pesa e como se move.
Sei da textura dos teus cabelos.
Sei como respiras e sei como dormes.
Não te conheço e escapas...
Não te conheço mas povoas as minhas noites.
Já não durmo, apenas me estendo na cama descompensado.
A noite... A noite... Devolve-me a noite.
O ar falta neste tempo que me foge.
Tenho sede dos teus lábios.
João Ganilho
quarta-feira, junho 18
Estado de espírito
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Alexandre O'Neill
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Alexandre O'Neill
domingo, junho 15
Viagem
Lembro-me que me olhavas com a tristeza de quem se acabou de perder de si mesmo. Pousavas-me a mão no ombro e perguntavas, entre soluços, “o que faço? o que faço? diz-me o que faço..?” e eu respondia-te que não sabia, que era injusto julgares-te perdido se nunca tinhas fugido de ti mesmo. Nessa altura já não sabia mais se era a tristeza ou se a incerteza que te tinha assaltado a alma.
Tu sabes que a vida consegue ser injusta e nem sempre temos a sorte de encontrar as pessoas na altura certa. Então ficamos com a sensação que somos obrigados a seguir em frente (porque a vida não pára) por um caminho húmido e escuro, onde não conseguimos sequer ver os próprios pés, e onde somos inevitavelmente forçados a pisar alguém ou a escorregar e a cair no chão. Só que antes disso vem a dor - os teus olhos. Antes disso vem a convicção de que um dia todas as certezas caem por terra, todas excepto a de estarmos perdidos, e só depois entendemos o que é afinal a tristeza.
- Já não me lembrava como era permanecer acordado pela noite fora - dizias-me - adormecer por instantes e acordar com a cara submersa em lágrimas, de angústia, sempre de angústia e desespero, de sobressalto.
Gostava de ter os braços maiores para te poder abraçar todo, te apertar e conseguir salvar do inevitável. Mas tu sabes que terás que caminhar às escuras e pisar muito do que se interpuser entre ti e a tua saída, tu sabes que provavelmente escorregarás e cairás mais do que o suposto, porque eu sei que não suportas o peso que é magoar alguém. Então transportar?s toda a raiva e dor só para ti, e eu só te posso assegurar que vou estar aqui - podes ter a certeza que eu estou sempre aqui - sempre, sempre para te ajudar, mesmo que do outro lado do espelho.
Lembro-me que me olhavas com a tristeza de quem se acabou de perder de si mesmo. Pousavas-me a mão no ombro e perguntavas, entre soluços, “o que faço? o que faço? diz-me o que faço..?” e eu respondia-te que não sabia, que era injusto julgares-te perdido se nunca tinhas fugido de ti mesmo. Nessa altura já não sabia mais se era a tristeza ou se a incerteza que te tinha assaltado a alma.
Tu sabes que a vida consegue ser injusta e nem sempre temos a sorte de encontrar as pessoas na altura certa. Então ficamos com a sensação que somos obrigados a seguir em frente (porque a vida não pára) por um caminho húmido e escuro, onde não conseguimos sequer ver os próprios pés, e onde somos inevitavelmente forçados a pisar alguém ou a escorregar e a cair no chão. Só que antes disso vem a dor - os teus olhos. Antes disso vem a convicção de que um dia todas as certezas caem por terra, todas excepto a de estarmos perdidos, e só depois entendemos o que é afinal a tristeza.
- Já não me lembrava como era permanecer acordado pela noite fora - dizias-me - adormecer por instantes e acordar com a cara submersa em lágrimas, de angústia, sempre de angústia e desespero, de sobressalto.
Gostava de ter os braços maiores para te poder abraçar todo, te apertar e conseguir salvar do inevitável. Mas tu sabes que terás que caminhar às escuras e pisar muito do que se interpuser entre ti e a tua saída, tu sabes que provavelmente escorregarás e cairás mais do que o suposto, porque eu sei que não suportas o peso que é magoar alguém. Então transportar?s toda a raiva e dor só para ti, e eu só te posso assegurar que vou estar aqui - podes ter a certeza que eu estou sempre aqui - sempre, sempre para te ajudar, mesmo que do outro lado do espelho.
sexta-feira, junho 13
Abandono
"A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? Eu sei
que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo
sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado
ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.
Não haver palavras és tu a desaparecer."
Bernardo Pinto de Almeida, in hotel spleen
"A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? Eu sei
que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo
sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado
ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.
Não haver palavras és tu a desaparecer."
Bernardo Pinto de Almeida, in hotel spleen
terça-feira, junho 10
Another day
"The kettle's on, the sun has gone, another day
She offers me, Tibetan tea, on a flower tray
She's at the door, she's want's to score, she really needs to say:
"I once loved you a long time ago, you know
Where the winds own forget-me-nots blow, you know
But I couldn't let myself go
Not knowing what on earth there was to know
But I wish that I had, 'cause it makes me so sad
that I never had one of your children."
Across the room, inside a tomb, a chance is waxed and waned
The night is young, why are we so hung-up, in each other's chains
I must take her, I must make her, while the dove domains
See the juice run as she flies
Run my wings under her sighs
As the flames of eternity rise
To lick us with the first born lash of dawn
Oh really my dear, I can't see what we fear
With ourselves, sat here between us
And at the door, we can't say more, than just another day
Without a sound, I turn around, and I walk away"
This Mortal Coil
"The kettle's on, the sun has gone, another day
She offers me, Tibetan tea, on a flower tray
She's at the door, she's want's to score, she really needs to say:
"I once loved you a long time ago, you know
Where the winds own forget-me-nots blow, you know
But I couldn't let myself go
Not knowing what on earth there was to know
But I wish that I had, 'cause it makes me so sad
that I never had one of your children."
Across the room, inside a tomb, a chance is waxed and waned
The night is young, why are we so hung-up, in each other's chains
I must take her, I must make her, while the dove domains
See the juice run as she flies
Run my wings under her sighs
As the flames of eternity rise
To lick us with the first born lash of dawn
Oh really my dear, I can't see what we fear
With ourselves, sat here between us
And at the door, we can't say more, than just another day
Without a sound, I turn around, and I walk away"
This Mortal Coil
domingo, junho 8
Paisagem
"(...) É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta pelo meio o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas, entre as mãos sumptuosas. A doçura mata. A luz salta às golfadas. A terra é alta. Tu és o nó de sangue que me sufoca. Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões da madeira fria. És uma faca cravada na minha vida secreta. E como as estrelas duplas consanguíneas, luzimos um para o outro nas trevas."
Herberto Helder, in (a carta da paixão) de "PHOTOMATON & VOX"
"(...) É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta pelo meio o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas, entre as mãos sumptuosas. A doçura mata. A luz salta às golfadas. A terra é alta. Tu és o nó de sangue que me sufoca. Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões da madeira fria. És uma faca cravada na minha vida secreta. E como as estrelas duplas consanguíneas, luzimos um para o outro nas trevas."
Herberto Helder, in (a carta da paixão) de "PHOTOMATON & VOX"
sábado, junho 7
Ainda acerca da Ode de Ricardo Reis
(para ser grande, sê inteiro)
- Ricardo Reis era um pessimista - disse a professora, enquanto nos leccionava uma aula de português – um sofredor.
Eu levantei o braço e pedi licença para falar.
Éramos nove, lembro-me bem, uma turma reduzida devido à experiência das provas globais, e ocupávamos uma sala pequenina, onde existia apenas uma fila de mesas.
A vergonha incomodava-me um pouco, confesso, sempre que me era tecido algum elogio eu baixava a cabeça para que não me vissem corar. Mesmo assim ergui o braço.
- Desculpe, professora, mas não concordo. Ricardo Reis não era só um apaixonado pessimista. Tinha os seus momentos... tinha momentos optimistas. Sabe, existe uma ode, uma ode à Lua...
(a professora parecia desconhecê-la, perguntou-me se a sabia de cor e pediu-me para a declamar)
- Mas em voz alta? Declamar, mesmo? Por favor, deixe-me antes escrevê-la no quadro. Por favor.
Declama, disse ela. E eu declamei. Engoli algumas vezes a seco, respirei fundo, baixei a cabeça e comecei a declamar. As palavras saíram-me todas seguidas, sem qualquer entoação poética, e as últimas tiveram que ser repetidas de cabeça levantada, porque me falhou a voz.
Sim, falhou-me a voz, falhou-me tudo. A voz, as pernas, a contenção nas lágrimas. Não pude evitar. No momento em que comecei a declamar deixei de estar ali. A sensação que tinha, sempre que lia a ode, era a de estar a querer ser toda, ali, naquele momento. Era a de estar a olhar para todos os lagos do mundo à procura da Lua. Era a de a ver brilhar cada vez mais para os meus olhos.
Então baixei a cabeça e respirei fundo (novamente).
Fez-se silêncio.
De repente a sala tornou-se grande, tão grande que parecia que podíamos todos levantarmo-nos e correr que nem loucos por entre o silêncio dos lagos, todos, todos nós em nós próprios.
Depois fui para casa, sentei-me no chão encostada ao guarda-roupa, e comecei a escrever: “Às vezes sinto-te como se estivesses do outro lado da porta (...)”
Hoje não sei mais o que fiz ao que escrevi. Não sei se o guardei em mais uma das minhas gavetas ou se o dei a quem era de direito.
Não sei.
Só sei que a porta do meu quarto nunca mais voltou a estar entreaberta.
Azul Cobalto: obrigada por me fazeres lembrar que as coincidências não são mais que traços do destino que, perdidos, se unem de vez em quando.
(para ser grande, sê inteiro)
- Ricardo Reis era um pessimista - disse a professora, enquanto nos leccionava uma aula de português – um sofredor.
Eu levantei o braço e pedi licença para falar.
Éramos nove, lembro-me bem, uma turma reduzida devido à experiência das provas globais, e ocupávamos uma sala pequenina, onde existia apenas uma fila de mesas.
A vergonha incomodava-me um pouco, confesso, sempre que me era tecido algum elogio eu baixava a cabeça para que não me vissem corar. Mesmo assim ergui o braço.
- Desculpe, professora, mas não concordo. Ricardo Reis não era só um apaixonado pessimista. Tinha os seus momentos... tinha momentos optimistas. Sabe, existe uma ode, uma ode à Lua...
(a professora parecia desconhecê-la, perguntou-me se a sabia de cor e pediu-me para a declamar)
- Mas em voz alta? Declamar, mesmo? Por favor, deixe-me antes escrevê-la no quadro. Por favor.
Declama, disse ela. E eu declamei. Engoli algumas vezes a seco, respirei fundo, baixei a cabeça e comecei a declamar. As palavras saíram-me todas seguidas, sem qualquer entoação poética, e as últimas tiveram que ser repetidas de cabeça levantada, porque me falhou a voz.
Sim, falhou-me a voz, falhou-me tudo. A voz, as pernas, a contenção nas lágrimas. Não pude evitar. No momento em que comecei a declamar deixei de estar ali. A sensação que tinha, sempre que lia a ode, era a de estar a querer ser toda, ali, naquele momento. Era a de estar a olhar para todos os lagos do mundo à procura da Lua. Era a de a ver brilhar cada vez mais para os meus olhos.
Então baixei a cabeça e respirei fundo (novamente).
Fez-se silêncio.
De repente a sala tornou-se grande, tão grande que parecia que podíamos todos levantarmo-nos e correr que nem loucos por entre o silêncio dos lagos, todos, todos nós em nós próprios.
Depois fui para casa, sentei-me no chão encostada ao guarda-roupa, e comecei a escrever: “Às vezes sinto-te como se estivesses do outro lado da porta (...)”
Hoje não sei mais o que fiz ao que escrevi. Não sei se o guardei em mais uma das minhas gavetas ou se o dei a quem era de direito.
Não sei.
Só sei que a porta do meu quarto nunca mais voltou a estar entreaberta.
Azul Cobalto: obrigada por me fazeres lembrar que as coincidências não são mais que traços do destino que, perdidos, se unem de vez em quando.
quarta-feira, junho 4
Cutout seven levels
Tanto por cento de cinza, sete níveis de côr; dez por cento de branco em cima deste torpor; uma porta que abre, uma mão escondida, um sorriso secreto antes da despedida; mil e uma palavras, são estranhos os momentos; e a côr, onde fica? num pedaço de escrita; não ter nada para pegar, não ter nada para ler, acordar a meio da noite e não esperar o amanhecer.
Rimar?
Rumar a norte e a sul; sonhar em ser astronauta; andar de bicicleta; atirar os sapatos ao ar; caminhar em cima de um tronco; correr atrás de uma bola; saltar em cima da cama; rebentar duas almofadas; beber um copo de água; sentir cócegas no pé; abraçar com um só braço; saltar para o outro lado; ter a coragem de alucinar; não ter medo da razão.
Amar.
Tanto por cento de cinza, sete níveis de côr; dez por cento de branco em cima deste torpor; uma porta que abre, uma mão escondida, um sorriso secreto antes da despedida; mil e uma palavras, são estranhos os momentos; e a côr, onde fica? num pedaço de escrita; não ter nada para pegar, não ter nada para ler, acordar a meio da noite e não esperar o amanhecer.
Rimar?
Rumar a norte e a sul; sonhar em ser astronauta; andar de bicicleta; atirar os sapatos ao ar; caminhar em cima de um tronco; correr atrás de uma bola; saltar em cima da cama; rebentar duas almofadas; beber um copo de água; sentir cócegas no pé; abraçar com um só braço; saltar para o outro lado; ter a coragem de alucinar; não ter medo da razão.
Amar.
terça-feira, junho 3
Recado
"ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer — vai por esse campo
de crateras extintas — vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo — deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração — ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna — o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira — não esqueças o ouro
o marfim — os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço"
Al Berto
"ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer — vai por esse campo
de crateras extintas — vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo — deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração — ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna — o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira — não esqueças o ouro
o marfim — os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço"
Al Berto
segunda-feira, junho 2
Para ser grande sê inteiro
"Para ser grande, sê inteiro:
Nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive."
Fernando Pessoa - Ricardo Reis
-
tudo o que devo à poesia nasceu aqui - a pele arrepiada, o nó na garganta - tudo o que devo à poesia devo a mim própria, porque sei o que a lua brilha.
"Para ser grande, sê inteiro:
Nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive."
Fernando Pessoa - Ricardo Reis
-
tudo o que devo à poesia nasceu aqui - a pele arrepiada, o nó na garganta - tudo o que devo à poesia devo a mim própria, porque sei o que a lua brilha.