Memória
É possível criar tons de azul para os teus olhos, imaginar-te sem pressas como quem espera pelo entardecer. Riscar o teu rosto na parede esbatendo os contornos, esculpindo arestas, embaciando-te os lábios.
É possível amar-te, assim, sem o perigo da eternidade. Esconder o medo nos bolsos e a vergonha de nunca ter o ter vencido. E a memória é só isto, é só isto, é esta faca que me atravessa o peito e me impede de parar. Não são as imagens, ou as fotos, as lembranças do luar. Não são as crianças que corriam na rua, ou a chuva que caía da última vez que te vi. A memória é só isto, ou o deslumbramento do álcool no meu sangue, vítima da vontade de deslembrar. Esta rua, este asfalto, estas luzes que me seguem a sombra, este cheiro, os teus olhos, as tuas mãos pelo ar.
Não é o passado, ou ainda o presente. Ou o único segundo de fuga que tenho ao acordar. Os meus pés na areia, as estrelas a caírem, a tua voz a chamar. A memória não és tu, e é tão somente isto: a vontade de não sonhar.