Clapham at night time, lights wash the pretzel store, and - we're still there, my love
quarta-feira, abril 30
segunda-feira, abril 28
domingo, abril 27
- Continuo à procura.
- À procura do quê?
- Da felicidade.
- Sabes ao menos onde procurar?
- Não sei, acho que na purificação das coisas, no seu estado mais próprio.
- Olha que não é por aí...
- Estás a querer dizer que a felicidade necessita de promiscuidade, confusão?
- Não, não. Só não me parece que seja assim tão inocente e límpida. A felicidade não é genuína, não nos é legítima. Está longe de ser algo exacto.
- Exacto? Mas porque não? Porque é que não nos há-de ser legítima?
- Simplesmente porque não é tua.
- Não é? Então não posso obter a minha própria felicidade?
- Não, porque ela não te pertence. Não és tu que tornas as coisas felizes, são elas que te tornam, a ti, feliz. Isso pertence-lhes a elas, não a ti. A felicidade não é de ninguém. Essa ilusão é criada pela sensação de bem estar, por um estado de alma.
- Porque é que tens sempre que me contrariar?
- Eu não te contrario.
- Contrarias sim. Tens uma capacidade castradora alucinante!
- Mas perdes logo assim a razão, é?
- Vai dar uma volta!
- Já dei...
quinta-feira, abril 24
"Perguntem pelo fogo...
Pela suave consistência de uma parede amarela.
De todos os lugares da casa,
a poeira recolhe aos cantos.
Gostaria de me sentar com a mesma certeza,
acumular atrás dos móveis e dos sofás...
Desvanecer em nuvem.
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Cada lábio um segredo de carne.
Tenho pela polpa uma suave paixão
de devorar o amor com pequenas dentadinhas,
curto, curto, rente ao corte do fruto.
Entre a saliva e o suco a ténue cumplicidade
de quem conhece os caminhos das frestas.
O sabor do suor nos teus cabelos e no teu ventre.
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Tive pela marca das coisas uma grande paixão.
Não sei o que me atraía,
se o prazer do tacto ou o peso das coisas do mundo.
Hoje cativa-me a nuvem ou a profundidade de um olhar,
o cheiro da terra húmida ou a cor inominável
do humor dos objectos insólitos."
João Ganilho
- Não estás a perceber, só te estou a telefonar porque não consigo escrever.
- Não consegues escrever?
- Não.
- São 3 da manhã…
- E então?
- E então? Então dorme, olha!
- Não consigo.
- (suspiro)
- Sonho há 4 noites seguidas contigo. É terrível, sei que vou fechar os olhos, adormecer, e quando acordar vou perceber que passei a noite inteira a sonhar contigo. Então não consigo dormir, e normalmente quando assim é, é porque preciso de escrever. Depois escrevo até olhar para as mãos e não ver mais nada nelas - até não encontrar mais nenhum traço por fantasiar.
- E porque é que hoje não resulta?
- Não sei, acho que tenho medo.
- Medo do quê?
- Medo da obsessão.
- (silêncio)
- Eu sempre tive medo de todo o tipo de psicoses. Acho que esse medo, só por si, é já uma psicose. Ou seja, eu tenho medo do medo. Dá para perceber?
- (suspiro)
- Já percebi: estás a apanhar seca… que merda!
- Não, não é isso. É que esse género de compromissos intelectuais transcendem-me. Ultrapassam-me. Eu gostava de poder dizer que também tenho sonhado contigo, mas na realidade não tenho. Não sonho contigo, nem sequer penso em ti. Que queres que faça? Desculpa mas não há forma mais delicada de o dizer. E, sinceramente, acho que assim será mais fácil para ti, será mais fácil perceberes de uma vez por todas que não temos nada a ver um com o outro. O amor é uma treta.
- Pode ser que seja.
- É.
- Gostas de Perry Blake? Estou a ouvir o blackbird.
- (silêncio)
- Pronto, boa noite…
- Boa noite.
quarta-feira, abril 23
"Não te queria quebrada pelos quatro elementos.
Nem apanhada apenas pelo tacto;
ou no aroma;
ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas
na funda malha de água.
Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.
Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,
trêmulo alimento entre roupa
alta,
nas camas.
Magnificência.
Levantava-te
em música, em ferida
- aterrada pela riqueza -
a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.
Fazia tremer o mundo.
E queimavas-me a boca, pura
colher de ouro tragada
viva. Brilhava-te a língua.
Eu brilhava.
Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,
nascesse da carne única
uma cana de mármore.
E alguém, passando, cortasse o sopro
de uma morte trançada. Lábios anônimos, no hausto
de árdua fêmea e macho
anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.
Modulassem.
E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.
Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.
Os planetas fechavam-se nessa
floresta de som unânime
pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador
da terra
Nome do mundo, diadema."
Herberto Helder
domingo, abril 20
Os degraus da minha Páscoa
A semana passada conheci um rapaz que, a propósito não sei bem do quê, me contou que para a família dele a Páscoa chega a ser mais importante que o Natal. Contou-me que toda a família se junta para comemorar, e que é imperdoável alguém faltar.
Cá em casa a Páscoa nunca foi assim. Na sexta-feira-santa comíamos carne, ao domingo o meu pai comprava um folar, e enquanto a minha mãe preparava o cabrito a minha avó entretia-se a semear amêndoas e ovos de chocolate pelo quintal, sementes essas que o meu irmão e eu nos encarregávamos de procurar esquematicamente, como se de um enigma do Poirrot se tratasse. Às vezes encontrávamo-las fácilmente, outras eramos socorridos pela ajuda dos 50-50 (está frio – está quente).
Depois, sentávamo-nos nos degraus das escadas e festejávamos a vitória.
Agora os tempos são outros e recordar-me de todas estas datas traz-me uma certa melancolia. É certo que para mim a Páscoa nunca foi como o Natal, mas acontece que nem uma nem outro são mais o que já foram – nada é hoje o que era ontem – nem eu própria sou a mesma.
Este fim-de-semana, por ser maior, vim passá-lo com os meus pais ao campo. Ajudei o meu pai a sulfatar as árvores e a minha mãe a cortar os arbustos, admirei os coelhinhos com 5 semanas, e questionei-me senão estaria já na altura de, uma vez que já lá vão 7 semanas de choco, os patinhos também nascerem.
No meio desta lufada de ar fresco, houve uma altura em que vim até casa, me sentei no sofá, e ao olhar para o jardim me apercebi do sol que, atravessando as nuvens, batia na minha janela. Pensei “mas o que estou eu a fazer aqui fechada?” e corri para a rua a apanhar ar, como se ele me tivessem faltado. Depois, lembrei-me de há alguns anos atrás não achar a mínima piada a apanhar laranjas ou a cortar arbustos, de correr para dentro de casa e me fechar nas minhas palavras, sempre nas palavras, pouco me importando se fazia chuva ou sol. E é então que me lembro também das palavras do rapaz da semana passada, e tenho pena de muitas vezes não ter dado às coisas o valor que elas mereciam, porque o tempo passa, o tempo leva-nos com ele e transforma-nos em coisas, assim como transformará o hoje em ontem.
Depois vem aquela sensação de vazio, de que não fomos justos com as coisas, de que não fomos justos para nós próprios. E estranho é que não adiantaria em nada deixarem-me voltar atrás, permitirem-me recuar no tempo e fazer as coisas de outro modo, porque sabe-se lá porquê eu não as faria.
Quem sabe se tudo não é realmente como deveria ser, como insiste o destino? – eu não sei – Só sei que entre a lareira que oiço a consumir a lenha na sala, e a possibilidade de alterar o passado, eu correrei para a lareira, pronta para me aquecer e fazer uma torrada. Porque amanhã é domingo, regresso a Lisboa, e mesmo sem amêndoas no quintal à minha espera, vou-me sentar nos degraus das escadas e festejar a vitória.
quinta-feira, abril 17
"My way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life,
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end
My peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long
shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts"
Um dia olhaste para mim e disseste que à margem da pele correm os riscos mais assumidos. Agarraste-me nas mãos e convidaste-te para jantar comigo. Não sei ainda como poderei classificar-te na minha escala de tentação, mas tu sabes que nunca tive muito jeito para professora.
Foi a única frase que me dirigiste e eu permiti de imediato que me acompanhasses.
O restaurante era pequeno e mal nos mexíamos na mesa. Tu comeste um bife ou outra merda qualquer, e eu fiquei-me pelo vinho, não fosse ter que ser eu a falar e não o suportaria fazer de boca cheia, do género: "Vá lá, (chomp chomp) diz qualquer coisa (nhac nhac), diz-me o que pensas da especifidade do cinema quando comparada com a de um pintor (nham nham), ou então fala-me do Genius Loci e do conceito de habitar (chlep chlep)".
Rídiculo. Aliás, nem sei o que vi em ti, qualquer pessoa que conversasse 5 minutos contigo julgar-te-ia no mínimo desinteressante. No meu caso não esperei muito mais e pedi gentilmente que conversasses comigo: "És mesmo um básico e só tens conversas de merda, ou isso tudo é para eu nunca te conhecer?" Parece-me que resultou, pois começámos logo a conversa. Lembro-me que falámos do Gaston Bachelard e da imaginação, da poética do espaço, da imitação na Arquitectura, da difusão da cultura, da formação e não construção do essencial... e só depois falámos de ti. E olha que não foi nada fácil, pois em intervalos de 10 em 10 minutos tentavas desviar a conversa e perguntar de onde é que eu era, o que fazia, etc e tal. Só que isso não interessava nada.
O restaurante ficou vazio e quase que tiveram que nos mandar embora. Eu já bêbada que nem um cacho, como era de imaginar, e tu muito enfiado em ti próprio, cheio de vergonha pelo que me tinhas dito. Acontece que não me tinhas dito nada, pelo menos nada do que eu já não soubesse.
Agora, 5 anos depois olho para ti e vejo que afinal sempre foste o mesmo básico de merda, que só sabia falar do que lia nos livros e não inventava nada. Agora, 5 anos depois eu percebo que nunca me foste capaz de falar da vida nem do teu medo de viver. Agora, 5 anos depois, sou eu que estou sentada à tua frente nesta merda de restaurante, onde as paredes tresandam a mofo e o chão se cola aos sapatos, com a boca cheia de bife e a ver-te comer outro, sem qualquer tipo de boas maneiras ou educação. E não me importo nada de não te ensinar tudo aquilo que já aprendi, pois já sabes que não tenho jeito para professora, não me importo de comer e calar para mim o que quero (e é tudo) e nem te dizer um "ai", porque tu não te importas e nem pedes para ouvir.
E chateia-me que no meio de tanta ignorância só tenha pena de, na primeira vez, não ter bebido 3 em vez de 2 garrafas de vinho.
“ Não preciso de mais nada para ser feliz,
Só o mar as estrelas e o silêncio.
Quando tudo o que te rodeia é tristeza
Tu e só tu sorris
E olhas nos olhos do Demónio que te rodeia
E ris-te não com sarcasmo
Mas da ironia de que a vida se trata
Com gozo, com satisfação,
Com alegria que preenche o teu coração.
Desejavas sentir-te sempre assim
Mas a vida é tudo…
A corda que há dias te amarrava soltou-se
E deixa-te agora respirar, viver…
Agora já não respiras com custo,
Mas com vontade, com a certeza
Que um dia voltarás a amar!"
Teresa
quarta-feira, abril 16
O bilhete de cinema
Era sábado à tarde e chovia intensamente. Ela chamou um táxi, disse ao marido "quero ir ao cinema", e ele como não lhe apetecia disse que não, "vai tu sozinha", que não queria sair. Então ela preparou-se e esperou à porta, de guarda chuva em punho, que o táxi chegasse. Estava nevoeiro mas ela não percebia se era mesmo névoa, ou se era a chuva que quando batia no asfalto quente criava uma espécie de vapor, como quando expirava pela boca. O táxi chegou e ela entrou pela porta de trás. O banco estava roto e encardido mas ela tinha já pressa a mais para reclamar - paciência a menos. Não o fez nem foi capaz de dar uma única indicação. O motorista perguntava "vai para onde?" e ela não respondia. Olhava para o banco sujo e faltavam-lhe as palavras. Estava absorvida nas imagens de uma noite de solteira, uma noite em que quis ir para casa sozinha e resolveu entrar num táxi que tinha acabado de parar, de onde saiu uma mulher que parecia uma prostituta, e sim, era decerto uma puta, que tinha deixado o banco sujo. E ela lembrava-se bem do forro de cabedal embaceado, da mancha húmida e circular no sítio preciso onde se queria sentar. Lembrava-se de todo o nojo que lhe tinha causado, e da expressão do motorista que, enquanto perguntava "vai para onde?", ainda olhava através dos vidros para a prostituta que caminhava aos ésses pela rua, a puta. E de repente a imagem sumiu e ela percebeu que não era suposto viver de recordações, e disse "isto é um disparate, tenho a cabeça cheia de arrependimentos e lamentações, não consigo mais deitar-me à noite sem uma tempestade no peito". O táxi andava, o tempo passava e o motorista insistia "mas vai para onde?", e ela não respondia. Só abanava a cabeça em tom afirmativo, dizendo "sim", que sim, "vou para o raio que me parta". E o motorista andava às voltas, ainda chegou a parar para beber um café e entregar o totoloto antes que passasse das horas, e ela sempre agarrada à porta do carro com as duas mãos, a trocar palavras com ela própria, e dizia, entre outras coisas, que não era bom ser-se cruel e pensar só em si próprio. Dizia "o homem que só a si se ama ataca sem dó", e perguntava "porque é que eu nasci tão só, porque é que eu não sei ser feliz", abanava a cabeça vezes sem conta e suspirava, queria saber porque raio precisava de sofrer para se sentir bem. Assustava o motorista, dizia "eu era a vida dele, mas ele não era a minha" e ficava impávida a olhar através da janela. "Eu sempre sou a vida de alguém, mas nunca ninguém foi a minha", continuava. O motorista cada vez mais assustado esfregava as mãos no volante, agarrando-o com força. Ela ouvia o ruído do esfregar na borracha e isso incomodava-a. Fartou-se e quis ir para casa, pediu "leve-me de volta a casa, estou farta de só me amar a mim própria", e ele levou-a. Levou hora e meia para perceber que não queria ir a parte alguma, ou ver a merda de um filme qualquer, pois não poderia encontrar-se onde nunca se tinha perdido. Levou hora e meia para chegar a casa e o marido lhe perguntar "onde foste" e ela responder "fui ao cinema", ele insistir "tão rápido?" e ela dizer "fui".
terça-feira, abril 15
Às vezes acordo cravejada pelo sono, com as mãos presas numa linguagem que nem eu entendo.
Prendo a respiração.
Olho, e através do vidro alcanço o que não via.
Toco - senão toco.
O prazer das mãos rendidas ao tacto.
O sangue a correr às golfadas.
Aprisionaste-me a alma - não te devia ter olhado nos olhos.
Sonho.
Sonho que não é sonho, senão o orvalho não existiria, e no seu lugar jazeriam raízes.
A eterna estabilidade temporal.
Nada existe - nada pode - nada prende.
Nada aperta o coração.
Esta folha bebe em tinta o que já tu bebeste de mim.
Nada fere.
A ilusão das garrafas manchadas pela respiração.
A asfixia do sono, o mergulhar dos olhos na escuridão.
A vida não é mais vida: nada mais do que se apresenta aos olhos.
Nada mais que as noites que me cravejam o sono.
Tu não és nada - és apenas esta cicatriz no meu peito.
"Erguias as mãos para falar às nuvens numa linguagem secreta,
dobrando a lingua e estalando os dedos.
Os teus gestos eram vagos para quem morava perto, assim,
segui-te de longe enquanto tacteavas os muros das casas.
Sentados à sombra perguntei-te sobre os segredos da matéria.
Disseste:
- Os lugares das coisas são apenas breves suspiros,
por isso me cansei da solidão das palavras ...
- De quando em quando, sacudo o pó dos quartos,
enfeito a casa com jasmim...
Então demos as mãos e esgravatámos a terra."
João Ganilho