À MARGEM DA PELE
Um dia olhaste para mim e disseste que à margem da pele correm os riscos mais assumidos. Agarraste-me nas mãos e convidaste-te para jantar comigo. Não sei ainda como poderei classificar-te na minha escala de tentação, mas tu sabes que nunca tive muito jeito para professora.
Foi a única frase que me dirigiste e eu permiti de imediato que me acompanhasses.
O restaurante era pequeno e mal nos mexíamos na mesa. Tu comeste um bife ou outra merda qualquer, e eu fiquei-me pelo vinho, não fosse ter que ser eu a falar e não o suportaria fazer de boca cheia, do género: "Vá lá, (chomp chomp) diz qualquer coisa (nhac nhac), diz-me o que pensas da especifidade do cinema quando comparada com a de um pintor (nham nham), ou então fala-me do Genius Loci e do conceito de habitar (chlep chlep)".
Rídiculo. Aliás, nem sei o que vi em ti, qualquer pessoa que conversasse 5 minutos contigo julgar-te-ia no mínimo desinteressante. No meu caso não esperei muito mais e pedi gentilmente que conversasses comigo: "És mesmo um básico e só tens conversas de merda, ou isso tudo é para eu nunca te conhecer?" Parece-me que resultou, pois começámos logo a conversa. Lembro-me que falámos do Gaston Bachelard e da imaginação, da poética do espaço, da imitação na Arquitectura, da difusão da cultura, da formação e não construção do essencial... e só depois falámos de ti. E olha que não foi nada fácil, pois em intervalos de 10 em 10 minutos tentavas desviar a conversa e perguntar de onde é que eu era, o que fazia, etc e tal. Só que isso não interessava nada.
O restaurante ficou vazio e quase que tiveram que nos mandar embora. Eu já bêbada que nem um cacho, como era de imaginar, e tu muito enfiado em ti próprio, cheio de vergonha pelo que me tinhas dito. Acontece que não me tinhas dito nada, pelo menos nada do que eu já não soubesse.
Agora, 5 anos depois olho para ti e vejo que afinal sempre foste o mesmo básico de merda, que só sabia falar do que lia nos livros e não inventava nada. Agora, 5 anos depois eu percebo que nunca me foste capaz de falar da vida nem do teu medo de viver. Agora, 5 anos depois, sou eu que estou sentada à tua frente nesta merda de restaurante, onde as paredes tresandam a mofo e o chão se cola aos sapatos, com a boca cheia de bife e a ver-te comer outro, sem qualquer tipo de boas maneiras ou educação. E não me importo nada de não te ensinar tudo aquilo que já aprendi, pois já sabes que não tenho jeito para professora, não me importo de comer e calar para mim o que quero (e é tudo) e nem te dizer um "ai", porque tu não te importas e nem pedes para ouvir.
E chateia-me que no meio de tanta ignorância só tenha pena de, na primeira vez, não ter bebido 3 em vez de 2 garrafas de vinho.