Antes do teu sorriso
Quando tudo era paz, e tu permanecias imóvel nas chamas, as vozes consumiam-se umas às outras reciprocamente. O que eu imaginava da tristeza estava já muito aquém do que sentia. Ser ou não eu já me escapava.
Repara como os dias passam e como nos agarramos a eles com tanta facilidade – como tudo parece fácil e fazer sentido, como tudo parece coincidir com o lento rodar do mundo – e nos tornamos a nós principiantes da fatalidade.
Se agarras a garganta entupida pelos gritos, se jogas a vida ao vento e decides desertar, fugir, não agarrar os outros com as tuas próprias certezas – essas razões estúpidas – beber dos cálices da futilidade arrotando o desespero, se trocares as tuas certezas por ideias, que será de ti?
Quando tudo parece bater certo reparas num espelho e a tua imagem não é mais um reflexo, as roupas rasgam-se no corpo estranho, alucinado, e as tuas mãos tremem parecendo quebrar a rotina do óbvio. Então largas a garganta arranhada, os cálices bebidos por todos, verdes, sujos, e temes o anoitecer.
Depois, o silêncio. Depois, a vontade de deitar tudo por terra, de não dormir mais, apenas de acordar.
Aí os dias correm uns a seguir aos outros, perdes o controlo de tudo o que tinhas por certo, das ideias dos outros impostas em ti, do mundo.
Foges.
Foges e levitas sobre a pequenez humana. Queres crescer mas não tens asas.
Aí o sentido das coisas mostra-te o inferno, e não sabes mais o que é o silêncio.
Ilha de Faro - Julho 2003