sábado, junho 7

Ainda acerca da Ode de Ricardo Reis
(para ser grande, sê inteiro)

- Ricardo Reis era um pessimista - disse a professora, enquanto nos leccionava uma aula de português – um sofredor.
Eu levantei o braço e pedi licença para falar.
Éramos nove, lembro-me bem, uma turma reduzida devido à experiência das provas globais, e ocupávamos uma sala pequenina, onde existia apenas uma fila de mesas.
A vergonha incomodava-me um pouco, confesso, sempre que me era tecido algum elogio eu baixava a cabeça para que não me vissem corar. Mesmo assim ergui o braço.
- Desculpe, professora, mas não concordo. Ricardo Reis não era só um apaixonado pessimista. Tinha os seus momentos... tinha momentos optimistas. Sabe, existe uma ode, uma ode à Lua...
(a professora parecia desconhecê-la, perguntou-me se a sabia de cor e pediu-me para a declamar)
- Mas em voz alta? Declamar, mesmo? Por favor, deixe-me antes escrevê-la no quadro. Por favor.
Declama, disse ela. E eu declamei. Engoli algumas vezes a seco, respirei fundo, baixei a cabeça e comecei a declamar. As palavras saíram-me todas seguidas, sem qualquer entoação poética, e as últimas tiveram que ser repetidas de cabeça levantada, porque me falhou a voz.
Sim, falhou-me a voz, falhou-me tudo. A voz, as pernas, a contenção nas lágrimas. Não pude evitar. No momento em que comecei a declamar deixei de estar ali. A sensação que tinha, sempre que lia a ode, era a de estar a querer ser toda, ali, naquele momento. Era a de estar a olhar para todos os lagos do mundo à procura da Lua. Era a de a ver brilhar cada vez mais para os meus olhos.
Então baixei a cabeça e respirei fundo (novamente).
Fez-se silêncio.
De repente a sala tornou-se grande, tão grande que parecia que podíamos todos levantarmo-nos e correr que nem loucos por entre o silêncio dos lagos, todos, todos nós em nós próprios.
Depois fui para casa, sentei-me no chão encostada ao guarda-roupa, e comecei a escrever: “Às vezes sinto-te como se estivesses do outro lado da porta (...)”
Hoje não sei mais o que fiz ao que escrevi. Não sei se o guardei em mais uma das minhas gavetas ou se o dei a quem era de direito.
Não sei.
Só sei que a porta do meu quarto nunca mais voltou a estar entreaberta.

Azul Cobalto: obrigada por me fazeres lembrar que as coincidências não são mais que traços do destino que, perdidos, se unem de vez em quando.