quarta-feira, abril 16


O bilhete de cinema

Era sábado à tarde e chovia intensamente. Ela chamou um táxi, disse ao marido "quero ir ao cinema", e ele como não lhe apetecia disse que não, "vai tu sozinha", que não queria sair. Então ela preparou-se e esperou à porta, de guarda chuva em punho, que o táxi chegasse. Estava nevoeiro mas ela não percebia se era mesmo névoa, ou se era a chuva que quando batia no asfalto quente criava uma espécie de vapor, como quando expirava pela boca. O táxi chegou e ela entrou pela porta de trás. O banco estava roto e encardido mas ela tinha já pressa a mais para reclamar - paciência a menos. Não o fez nem foi capaz de dar uma única indicação. O motorista perguntava "vai para onde?" e ela não respondia. Olhava para o banco sujo e faltavam-lhe as palavras. Estava absorvida nas imagens de uma noite de solteira, uma noite em que quis ir para casa sozinha e resolveu entrar num táxi que tinha acabado de parar, de onde saiu uma mulher que parecia uma prostituta, e sim, era decerto uma puta, que tinha deixado o banco sujo. E ela lembrava-se bem do forro de cabedal embaceado, da mancha húmida e circular no sítio preciso onde se queria sentar. Lembrava-se de todo o nojo que lhe tinha causado, e da expressão do motorista que, enquanto perguntava "vai para onde?", ainda olhava através dos vidros para a prostituta que caminhava aos ésses pela rua, a puta. E de repente a imagem sumiu e ela percebeu que não era suposto viver de recordações, e disse "isto é um disparate, tenho a cabeça cheia de arrependimentos e lamentações, não consigo mais deitar-me à noite sem uma tempestade no peito". O táxi andava, o tempo passava e o motorista insistia "mas vai para onde?", e ela não respondia. Só abanava a cabeça em tom afirmativo, dizendo "sim", que sim, "vou para o raio que me parta". E o motorista andava às voltas, ainda chegou a parar para beber um café e entregar o totoloto antes que passasse das horas, e ela sempre agarrada à porta do carro com as duas mãos, a trocar palavras com ela própria, e dizia, entre outras coisas, que não era bom ser-se cruel e pensar só em si próprio. Dizia "o homem que só a si se ama ataca sem dó", e perguntava "porque é que eu nasci tão só, porque é que eu não sei ser feliz", abanava a cabeça vezes sem conta e suspirava, queria saber porque raio precisava de sofrer para se sentir bem. Assustava o motorista, dizia "eu era a vida dele, mas ele não era a minha" e ficava impávida a olhar através da janela. "Eu sempre sou a vida de alguém, mas nunca ninguém foi a minha", continuava. O motorista cada vez mais assustado esfregava as mãos no volante, agarrando-o com força. Ela ouvia o ruído do esfregar na borracha e isso incomodava-a. Fartou-se e quis ir para casa, pediu "leve-me de volta a casa, estou farta de só me amar a mim própria", e ele levou-a. Levou hora e meia para perceber que não queria ir a parte alguma, ou ver a merda de um filme qualquer, pois não poderia encontrar-se onde nunca se tinha perdido. Levou hora e meia para chegar a casa e o marido lhe perguntar "onde foste" e ela responder "fui ao cinema", ele insistir "tão rápido?" e ela dizer "fui".