terça-feira, julho 1

Esta chuva

Silêncio.
De olhos presos no infinito, atravessas a janela sem nada ouvir.
Estou aqui, não ouves?
Eu sei que ontem te magoei. Sei que disse coisas que não deveria. Mas tenho tido sonhos em que me abandonas ou te apaixonas sempre por alguém. Às vezes acordo já na linha que há entre a loucura e a sobriedade.
Não quero que penses que dependo de ti para o que quer que seja. É ridículo este desespero de te perder, e é ridícula também a vontade que tenho de te abandonar.
É preciso – penso eu às vezes.
Eu sei que nunca conseguirei ser quem sou se depender de alguém. O que sinto transforma-me, afecta-me, as minhas acções não se assemelham mais com a imagem que tinha de mim, e levam-me a pôr em dúvida o que afinal sou.
Lembras-te de como eram os meus quadros quando me conheceste? Eram jardins encantados, dizias tu. Cheios de personagens parecidas com as das fábulas que eu lia quando era criança. Fortes como a árvore do meu quintal, e seguros como o baloiço que nela pousava. Recordações e delírios de uma tempestade.
E agora? Olha lá para eles, vá! Diz-me o que vês. Nada, não é? Apenas o vazio. O cinzento. Nada de fábulas, jardins, nem o meu baloiço aparece mais..!
Por favor… não percebes que me consumiste toda? Não percebes que bebeste a minha tranquilidade de uma vez só? Eu não tenho mais por onde sonhar…
Já levo comigo tudo aquilo que queria levar.
Eu sei que me estás a ouvir… Sei que não falas porque não admites que alguém consiga deixar quem ama. Já me acusaste de não te amar, podes acusar outra vez!
Vá! Acusa! Diz-me tudo o que tens entalado na garganta!
Fraco! Sempre foste um fraco! Nem agora que ganhaste a minha força a sabes usar!
… Desculpa… Não te queria magoar… vês como é fácil atacar-te com o mínimo que seja? Mas tu não respondes, tu não dizes nada! Ficas aí, a ohar por essa estúpida janela! Porque é que não dizes alguma coisa?
- Se queres ir embora, vai. Mas deixa-me recordar-te como eras antes.
O mais difícil, o que me custa mais, é perceber que nem tu estás contente comigo. Tu tentaste, eu sei, sobrepor o amor que sentes por mim a todo o resto, mas eu, já vazia, não tenho mais nada de novo para te dar, e assim, para que ames.
E agora pedes-me que te deixe recordar quem eu era.
Também tenho saudades minhas, sabes?






Quando criança, era costume Alice isolar-se no seu quarto. Não que se desse mal com os pais e irmãos… era mesmo ela que apreciava a solidão. O silêncio.
Era capaz de passar horas a baloiçar no quintal, sozinha, perdida na sua imaginação. Podiam chamá-la, falar com ela, nada adiantava. Ela permanecia ali, inabalável, baloiçando para trás e para a frente, em leves movimentos, como quem está à espera do óbvio.
Mas a verdade é que nunca ninguém percebeu o que Alice tanto esperava.
Um dia, tinha ainda 7 anos, Alice observou atentamente o pai a pintar o seu quarto. No fim, comparou as paredes com as folhas do seu caderno, e quando o pai lhe perguntou se as queria pintar, Alice respondeu que não, que algumas coisas, como o silêncio, não deveriam ser ocupadas. E ficou imóvel durante horas a olhar para elas. Depois, e de repente, pegou no seu caderno e desatou a desenhar. Desenhou e pintou folhas e mais folhas, até terminar o caderno. Só por isso parou.
Não podia explicar.
Talvez o silêncio, o inabalável silêncio, aquele que sempre a acompanhara e lhe dara largas à imaginação, fosse o responsável. Ou talvez fosse a impossibilidade voluntária de não pintar as paredes, o proibido, que lhe tivesse enchido a mente de imagens e ilustrações.
Como se tentasse exprimir todas as palavras que tinha caladas.
A partir desse dia, todas as tardes, assim que chegava da escola, Alice corria para o seu quarto e pintava até a hora de jantar. Pouco ligava às correrias e risos que se ouviam do outro lado da janela, ou aos pedidos da mãe para que fosse lanchar.
Só havia uma coisa que a fazia largar os lápis e os pincéis, mesmo que temporariamente: o baloiço.
Aos 12 anos, crentes das suas potencialidades, os pais ofereceram-lhe a maior tela que encrontraram à venda.
Por mais estranho que pareça, Alice não achou muita piada à ideia. Achou que lhe queriam cobrir as paredes - que lhe queriam roubar o silêncio. E não ousou um sequer golpe de pincel em tão imponente tela.
Um ano depois, num domingo à tarde, caiu em tempestade a maior chuva que Alice alguma vez viu.
Curiosa, foi até à janela e ficou a olhar para os relâmpagos que, acompanhados pelo retumbar da trovoada, se faziam abater sobre o quintal. De repente, e sem que nada pudesse ser feito, a árvore que lhe apoiava o baloiço foi apanhada por um raio de luz. Quebrando-se em chamas, tombou para o lado, testemunhando a destruição do ser.
Azar, injustiça, exiguidade.
Aquilo era tudo que existia.
Todas as lágrimas que Alice verteu, dias e dias trancada na escuridão do seu quarto, não fizeram a árvore renascer, ou o baloiço erguer-se no meio do quintal – e não demorou para que Alice o percebesse. Enxugou as lágrimas e começou a pintar a grande tela que outrora tinha recusado e escondido.
Mais tarde, cobrindo a janela do quintal, a grande tela mostrava a segura árvore e o seu baloiço, rodeados de flores e relva verde, num lindo dia ensolarado.
Em frente, Alice admirava a sua obra, cobrindo também o seu coração da memória de uma tempestade.